Vitória Taborda

A lógica das aparências

por Vera Beatriz Siqueira - Curadora

Em texto sobre seu próprio trabalho, Vitória Taborda afirmou que busca, acima de tudo, “a forma antes da função. A arte sem uma função”. A princípio, tal afirmação pode nos parecer estranha, pois nada na obra da artista indica qualquer traço de defesa da arte pela arte. A começar pelo seu interesse pelas coisas da natureza, tão desprezada pelas fileiras esteticistas. Não temos, porém, como duvidar da sinceridade da artista em pontuar a dimensão “puramente estética” de sua obra, desde que compreendamos que essa “pureza” nada tem de substancialismo metafísico ou profundidade romântica. Ao contrário, diz respeito ao olhar peculiar que dirige às coisas da natureza, sempre novo, como se as estivesse vendo pela primeira vez. Em seu instante de aparecimento, as coisas são percebidas como presenças encantatórias, sem classificações, sem interpretações intelectuais, sem qualquer atribuição de função ou utilidade. Repousam na indecisão de sua própria existência como formas.

Nas suas expedições pelos jardins, Vitória vai recolhendo elementos orgânicos descartados: pequenos galhos, folhas secas, corpos de insetos mortos, para os quais dirige seu agudo desejo e olhar poético. Com a familiaridade, passou a admirar até a beleza das coisas desprezadas, como as asas da barata, translúcidas e brilhantes. Aprendeu a identificar num relance o material que poderá levar para seu ateliê, formando uma coleção de coisas que serão recombinadas, paciente e delicadamente, em seus trabalhos. As caixas de madeira em que acondiciona o resultado de sua criação artística – feitas por especialista na fabricação desses suportes entomológicos – lembram a origem de seus seres que, entretanto, não são fixados em sua realidade pretérita. Ao contrário, registram a abertura para uma versão fabulosa e imaginativa da natureza ou, como talvez prefira a artista, uma forma sem função, uma aparência.

O escritor Vladimir Nabokov descreveu como, ao realizar suas pesquisas entomológicas, deixou-se fascinar pelos “mistérios do mimetismo”: “Seus fenômenos revelavam uma perfeição artística geralmente associada a coisas feitas pelo homem”. Encantava-se com os “truques de uma lagarta acrobata” que no processo de transformação assumia “características barrocas”. Com a mariposa que não se limitava a imitar o aspecto de uma vespa, mas igualmente o seu modo de caminhar e mover as antenas. Ou com a borboleta que “generosamente” acrescentava nos detalhes da folha que mimetizava os buracos feitos pelas lagartas. Por entender que a teoria evolutiva não era capaz de explicar esse nível de “sutileza, exuberância e luxo miméticos”, conclui: “Descobri na natureza as delícias não utilitárias que eu procurava na arte. Ambas eram uma forma de magia, ambas eram um jogo de intrincados encantamento e engano” (Nabokov, Fala, memória).

A exploração da natureza em Vitória Taborda parte de semelhante encanto estético. Na série Animale Insectum, afirma a simetria entre arte e ciência em sua busca pelo mistério, pela novidade, por aquilo que ainda não foi classificado ou racionalizado. O título da série já aponta para esse imbricamento. Em latim, Animale Insectum significa “animal segmentado”, referindo-se ao fato de os insetos terem seu corpo dividido em partes. Mas essa origem científica não lhe é suficiente. A ela, Vitória agrega a dimensão artística, ao incluir nas pranchas o termo “animal em segmentos livres”, numa referência direta aos versos livres da poesia moderna. A ausência de regras ou métricas, característica central dos versos livres, é essencial para o seu processo criativo, no qual costura dejetos de diferentes origens na busca de uma forma final que seja livre, no sentido de ser única e independente, mas que, ao mesmo tempo, guarde a memória latente dos seres que a inspiraram.

Seus insetos desafiam nossa percepção. Como o cachimbo de Magritte, que vive na indecisão entre ser e não ser um cachimbo, os animais em segmentos livres de Vitória Taborda pulsam no espaço intermediário entre natureza e arte. Em uma primeira visada, ficamos plenamente convencidos da sua semelhança com os insetos que conhecemos (ou imaginamos), com seus corpos, antenas, patas e asas. Apenas para, logo a seguir, começarmos a identificar elementos estranhos: as folhas secas que assumem o lugar dos corpos, os finos galhos dobrados, pequenas inserções coloridas etc. Nada disso impede, entretanto, que continuemos aproximando essas criações dos insetos que lhes servem de modelo. E podemos passar horas assim, diante das muitas caixas de seres mágicos, indo e vindo entre os sentidos que não se fixam, nesse jogo de encantamento e engano, para retomar as palavras de Nabokov.

Na subsérie Mimetismo, acrescenta, no fundo das caixas, pinturas geométricas sobre as quais pousam os insetos que presumidamente as mimetizam. Não há como não se perguntar: o que veio antes? São os insetos que imitam a pintura? Ou a pintura que se adequa às cores e aos padrões formais desses seres fabulosos? Seja lá como for, para nós tudo aparece ao mesmo tempo, como sintoma do experimentalismo despretensioso da artista, de sua permanente relação de aceitação e celebração da contingência. Vitória jamais nos oferece uma ação coordenada e planejada, pela qual sejamos capazes de distinguir etapas e antever resultados. Como nos versos livres da poesia moderna que faz questão de citar, não há planos, porque tudo deriva de uma surpreendente disciplina do improviso, à qual se entrega com empenho e disponibilidade, até alcançar de novo o estágio originário da descoberta – aquela sensação de encontrar pela primeira vez.

Esse sentido de perene descoberta reaparece na série Paisagismo, na qual as pequenas espécies vegetais dispostas em caixas de madeira são o resultado do trabalho cuidadoso de selecionar e modelar os galhos recolhidos depois que caem. Há uma curiosa integridade nessas pequenas árvores. São trechos de galhos que chamamos, sem qualquer pudor, de árvores. Porque há ali uma inteireza indiscutível, a completude de uma figura de linguagem. Por substituição metonímica, o galho se transforma em árvore. Mas não uma árvore qualquer, e sim aquela que resume todas as árvores; aquela que desenhávamos quando crianças, com tronco e copa; aquela que carregamos na memória e na imaginação.

Por isso, gosto de pensar nelas como dendrogramas, representações abstratas e esquemáticas que se referem a árvores ausentes. Uma delas evoca diretamente a memória dolorida do membro amputado (Phantom Limb), revelando a agonia que perpassa o trabalho da artista. Suas árvores falam ainda de um paisagismo fabuloso, com podas geométricas, projetos para controle da neve ou para casas na árvore. Contidos pela escala reduzida de suas caixas, esses projetos se transfiguram até o limite do inverossímil, no exato instante em que recuperam sua dimensão material, retornando à condição de galhos secos. Ou, dito de outro modo, ativam novamente a peculiar lógica da aparência: até onde são galhos? Quando passam a ser árvores? Quando deixam de ser coisas para se tornarem memória ou projetos? Quando recuperam sua origem objetiva?

Em série mais recente, Ovo Duro, a artista dá nova direção a seu experimentalismo. Adquire ovos brancos e azuis que cuidadosamente esvazia, recorta, cola uns aos outros. Se folhas secas, galhos e corpos de insetos já ofereciam uma boa dose de resistência à formalização artística, as frágeis cascas de ovos acrescentam outra ordem de obstinação, exigindo, em igual medida, paciência e empenho. O tempo de produção é moroso, descontínuo e mediado pelas inúmeras (e inimagináveis) dificuldades do processo. Curiosamente, a soma de todos esses esforços conduz a objetos que lembram os objets trouvés. Alguns fazem mesmo questão de mostrar essa relação, ressoando figuras orgânicas, combinação de formas geométricas ou gestos associativos característicos dos objetos dadaístas e surrealistas.

Após uma obsessiva e delicada artesania, seus ovos reconquistam a condição de achados, no duplo sentido de encontrados e de inventados: empilham-se uns sobre os outros, formam imprevistas colunas, apoiam-se sobre bases e prateleiras, dissolvem-se em elaboradas espirais, oferecem a sua casca lisa, ora côncava, ora convexa, para nossa apreciação estética. As configurações que Vitória alcança com esse processo de desconstrução e construção falam de uma nova unidade, mas também de coisas inevitavelmente partidas. A própria artista, ao falar sobre esses trabalhos, evoca a lembrança do Humpty Dumpty das histórias infantis, que caiu do muro e nem todos os cavalos e homens do rei foram capazes de “juntá-lo outra vez”. Os ovos são, portanto, outros seres segmentados do repertório da artista, que recolocam a temporalidade simultaneamente passada e futura no agora da arte.

Gostaria também de falar de outra série, bem diferente, mas que me parece ser uma espécie de respiro, antes de retornar aos demais trabalhos. Trata-se de um conjunto de pinturas reunidas sob o nome Double Blind (Duplo Cego), nas quais a artista pinta sobre superfície sanfonada, criando uma imagem cambiante, que se transforma à medida em que se passa de um lado a outro dos pequenos quadros. A princípio, nada parece juntar esses trabalhos aos outros dos quais falamos. A escala pequena e a artesania paciente até poderiam aproximá-los, mas a diferença é marcante. Interessante, porém, é pensar como essas pinturas reendereçam o cerne da poética de Vitória. Revelam o encanto com o jogo de ilusões, a dedicação à reflexão continuada sobre as aparências fugazes do mundo, sobre as suas incertezas e transformações.

Eu mesma me referi a imagens quando falei dessas pinturas, na falta de palavra melhor, mas elas são tudo menos isso. Não são representações, tampouco discursos sobre a virtualidade característica do universo contemporâneo. Recordam-nos imediatamente as experiências com a tabula scalata, nas quais duas imagens eram pintadas em faixas sobre superfície corrugada, podendo ser vistas de modo correto a partir de certo ponto de vista. Difundidas a partir do século XVII na Europa, essas pinturas moventes (turning pictures, como ficaram conhecidas em inglês) eram cercadas de interesse simultaneamente geométrico e lúdico.

Mas em Double Blind, o que interessa não é encontrar a imagem a partir de seu ângulo correto. Tampouco as diferenças entre as duas imagens são tão expressivas (na tabula scalata era frequente opor retratos de duas pessoas ou uma cabeça de jovem e uma caveira, por exemplo). O que interessa é fazer e desfazer a sua experiência, acompanhá-la em seu ir e vir. Acresce-se a isso o seu tamanho reduzido, que recusa francamente a dimensão do espetáculo. Estamos, assim, diante de uma vivência pendular, na qual não somos capazes de estabilizar esses trabalhos como imagens ou mesmo como quadros, na medida em que reafirmam o vínculo com o jogo de ilusão e engano que baseia os trabalhos de Vitória. Funcionam, assim, como um bem-sucedido lapso, no sentido psicanalítico: a revelação involuntária dos desejos que fundamentam sua sina de artista.

Vitória Taborda decidiu agora se apresentar ao público. Durante anos permaneceu no seu estúdio, desenvolvendo os trabalhos que integram essa exposição. A necessidade de exibi-los surgiu como parte do processo da artista, como consequência inevitável de seu peculiar experimentalismo desafetado, que dirige ao mundo um olhar sempre novo, como se o descobrisse a cada vez. Esse olhar que atravessa a obra de Vitória recusa a exterioridade utilitária da realidade, exigindo do espectador a entrega a um outro modo de viver a realidade, no qual nos encantamos com as suas formas sem a presunção da ordenação racional e classificatória. No quadro da arte contemporânea brasileira, a honestidade e a despretensão da obra de Vitória têm muito a oferecer em termos de uma experiência estética que nos aproxime das “delícias não utilitárias” da natureza e da arte.

¹In: NABOKOV, Vladimir. Fala, memória. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014, p. 117

Minúsculo breviário das impermanências

por Olívia Maria Gomes da Cunha

Permutações entre arte e ciência habitam, há tempos, os debates sobre os modos de descrever e imaginar mundos. Em O Pensamento Selvagem (1962), o antropólogo Claude Lévi-Strauss refletiu sobre os nós que enredam, em tramas variadas (e nunca findas), os conhecimentos chamados científicos entre os "modernos". Taxonomias, classes de significações e comparações são aplicadas aos conhecimentos sobre os seres, vivos ou inertes, que habitam a Terra. Entre povos originários e populações tradicionais, os conhecimentos sobre as coisas que existem, suas similitudes, diferenças e traduções, são expressões do sensível, perfazem uma arte. As séries que conformam a coleção de trabalhos de Vitória Taborda reinscrevem algumas implicações de múltiplas "confluências nos modos de pensamento", nos termos do pensador Antônio Bispo dos Santos. Para conhecer os trabalhos que compõem a exposição Aparência, talvez seja preciso mobilizar nossa imaginação na direção das palavras e das imagens que povoam a ciência e a arte de conhecer o cosmo. Mirarmos as confluências, as coparticipações e as mutações do vir a ser das coisas que nos afetam e nos capturam o olhar, observando o instante. Um breviário pode ser um instrumento de bordo útil ao pontuar noções aparentadas que suscitam exercícios de familiarização e estranhamento. A aparência é o outro nome da impermanência.

risco — A tradição botânica pré-moderna transcreveu desenhos e notações que sucumbiram, tempos depois, à padronização — a junção de diferentes maneiras de existir em um único mundo criado por um ser supremo. O encontro do papel com a tinta criava uma profusão imagens de um universo divino, retratadas por mãos humanas. A arte de descrevê-lo a partir da observação, da coleta e da comparação científicas seguiu as inscrições da variedade e das variações no jardim do Éden. Miríades de criaturas retratadas como reprodução do real —imagens dos viventes frente aos cenários bucólicos do paraíso — ganharam as páginas dos tratados como riscos. Ciência e arte começavam, assim, uma relação acidentada. Pois representar a criação era, também, criar reinos, tipologias, espécies e taxonomias de modos de existir outros. Uma arte de conhecer a dessemelhança dos seres vivos e distingui-los das coisas inertes — uma ciência. Uma ciência de capturar a vida percebida pelo olhar, pelo ouvir, pelo tocar — uma arte. Os riscos espreitavam a imaginação e método; as formas dadas a ver na observação viajante confundem. Uma larva, uma libélula, uma flor e uma borboleta em distintas proporções ocupam a gravura. Qual reino? A linha entre arte e ciência sempre foi tênue. Inexistente porque porosa. Mundos em segmentos. Quando vida? Vitória Taborda cria Animais em Segmentos Livres. A referência imediata são os enquadramentos científicos, dos quais a artista libera sua Animale Insectum. O desejo de liberar, nomear forma, textura, usos, funções e aparências também orientou as práticas das coletoras e das observadoras.

transformação — Teria Maria Sybilla Merian (1647-1717) refletido sobre a imaginação e a realidade; sobre a transformação na criação de outras socialidades? Os enxames, os ninhos, as teias e os refúgios nos quais criaturas aladas ou inertes se espraiam em rizomas. Repleto de gravuras e desenhos em cores vivas, Metamorphosis Insectorum Surinamensium (1705) foi publicado por Merian após passar dois anos na Guiana Holandesa (atual Suriname). Ao contrário de outros naturalistas, o ciclo da vida dos insetos em permanente contato com outros organismos animais e vegetais capturou a atenção da artista. Mais do que fases do desenvolvimento dos insetos, as plantas polinizadas, seus frutos, sementes, grandeza e cores não apenas estendiam as tramas da vida nas relações interespécies num ecossistema pouco conhecido: elas tornavam o efêmero o foco central de seus desenhos. Suas gravuras tinham como objetivo estabilizar a transformação, capturar o instante, desvelar as formas instáveis. Com Maria Sybilla, a natureza-cenário da criação divina ganhava, além de três dimensões, observadores mais-que-humanos. Observadores humanos podem mirar a libélula avançando sobre um broto, a larva é o que resulta do encontro vegetal-animal. A arte de Merian reinventava modos de retratar insetos e plantas enredados em ecologias transitórias, transitivas, abertas ao inesperado. Merian refez algumas gravuras de Metamorphosis em diferentes perspectivas, para que pudessem ser vendidos para coletores especiais: arte de ver um mundo natural. A perspectiva era, assim, um modo de libertar a natureza das amarras das taxonomias da ciência. A momentânea confusão gerada pela desconformidade das espécies deixa de ser miragem — quando a larva pende sobre o caule, ela enreda bem mais do que fios da seda. É o “encontro”, na ecopoética de Donna Haraway, e a “simbiose” das ciências modernas, que pululam como possibilidades da representação do inacabado. Todo bicho-planta retratado é a pré-figuração de um vir a ser relação. Bicho-planta, planta-bicho, ser sem nome. Devir-larva, devir-mariposa, devir-casulo, pré e pós-florescência afetadas pelas luzes dos trópicos. O efêmero corrói a classificação, a apartação entre reinos, o enquadramento e as classes. Abduzir o estranho é parte da ciência como arte de descrever a vida.

estranhamento — Surpresa em passar em revista as caixas com espécies de bicho-algum [aparentes artrópodes ajuntados, colados e presos em pinos]? Os olhos dos visitantes do museu de história natural navegam por entre as vitrines, displays que os contêm em variadas espécies, cores e tamanhos. Asas, membranas, pinças, tonalidades com propriedades miméticas e filamentos orientam o trabalho de classificação, a confecção de etiquetas. Mas os insetos podem ser vistos como a nossa [humana] exterioridade, contraditoriamente aparente e absoluta — o que nos escapa, arrodeia, dilata as pupilas, assombra e surpreende sem deixar de povoar nossas entranhas quando toda luz se apaga. Quando há luz, a fêmea Anopheles protege e abriga seu ovos em corpos humanos que exalam calor e água. Febre. Mas se em vez dos efeitos do toque, ardimento e comichão que transpassa a pele deixando rastros sob o tecido que recobre momentaneamente nossos pés e os separa da terra pisada, avistássemos o bicho-pau (Ordem Phasmastidea) interessado em plasmar a película, a cobertura da outra casca onde se esconde? Outras criaturas de ordem aparentada emulam a ação do vento, enfrentando a turbulência em movimentos repetidos, swingando em asas. Fitófago e travestido no que come, segue o Cladomorphus phyllinum virado folha de goiabeira. Artrópodes reúnem mais do que juntas, recolhem os mundos dos outros nos quais habitam, dos quais se alimentam.

mimeses — A reta, os vértices, os ângulos: toda a geometria parece resistir inquieta. Foi assim desde muito antes e depois de Metamorphosis. As ciências modernas desinteressadas na forma, passaram a observar as continuidades, os enovelos, as curvas. Se tudo é transformação, a geometria restava orientando os cálculos, mensurando movimento e intensidade. Flores e animais cultivados nos jardins botânicos ignoravam as aleias, os caminhos, as pontes e as veredas. A geometria compunha parte do conhecimento dos humanos que traduziam em padrões, fórmulas e escalas modos de redução do mundo que eles veem. Mas nos embates entre ciência e arte, a oposição natureza-cultura abre espaço para outras possibilidades, embaralhando os ditames das formas e das funções, desnudando os caprichos de outras relações. Vitória Taborda indaga sobre a não-existência do desconhecido para situar seu trabalho no plano da criação. Existir para quem? Aos segmentos numerados inventam, plasmam uma serialização da desclassificação, como se quimeras pudessem ser enquadradas nas caixas dos entomólogos. Mas o que nelas se abriga são fragmentos, coisas pequeníssimas que se revelam colossais se avistadas por um besourinho de jardim. A pinça-mão da artista as recolhe, e em ajuntamentos, colagens e minúsculos pinos, o não-existente nasce menos como avesso do real, e mais como mimese da potência transformadora da vida. Abiogênese? O desenvolvimentos de tecnologias em conversa com outros-que-humanos inventaram protótipos que simulam, simultaneamente, insetos de ordens e famílias diferentes, e crípticos - figuras outrora monstruosas, pois não-aparentadas. Os robobee (abelhas robô) emulam as rotas ziguezague das abelhas, mas não produzem mel. Em simetrias e semelhantes buscas, sugere Vitória Taborda, pretende-se aceder algum diálogo no qual a forma tem primazia. Na linguagem dos entomólogos, um "mimetismo tático". Quando o semelhante, quando a diferença?

sombra — As séries Animale Insectum e Paisagismo tramam impensáveis articulações, perfazendo filamentos numerados que só existem no universo da criação [no dizer dos cientistas, "arte"] do mesmo modo que as "sementes aladas" que integram os frutos azulados dos abricó-de-macaco não voam [artistas diriam "ciência"] na descrição oferecida no dicionário da botânica. Os Aegiphila sellowiana Cham são pau-de-gaiola como função ou forma na linguagem da cultura? E o escaravelho Arlequim (Acrocinus longimanus), identificado por Carl von Linnaeus em 1758, descreve as pantomimas ou as vestimentas multicoloridas do exuberante besouro? A palavra, o nome, a linguagem popular ou científica, capturam concepções e denotam "posições" variadas sobre os modos de ser, não importa se aqueles existentes no mundo da ciência ou da arte. As criaturas que integram as duas séries são apresentadas em três dimensões e infletem sombras. Seriam estas apenas efeitos? Instanciações da presença das coisas-bichos em caixas? A referência às leis de Lavoisier é apenas memento. Não aplacam o inusitado. Manifestação do impermanente, as sombras nos acalmam. Algo está por vir.

¹Lévi-Strauss, Claude. [1960] Pensamento Selvagem. São Paulo: Papirus, 1989, p.177²Santos, Antônio Bispo dos. "Somos da terra." Piseagrama, Belo Horizonte 12: 44-51, 2018, p.2.³Merian, Maria Sibylla et al. Bert van de Roemer et al., eds. Maria Sibylla Merian: Changing the Nature of Art and Science. Tielt: Lannoo, 2022.⁴ Haraway, Donna J. When species meet. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2013.⁵ Raffles, Hugh. Insectopedia. New York: Vintage Books, 2011, p.44.⁶"RoboBees: Autonomous Flying Microrobots" e "Controlling the flight of a robotic insect." Wyss Institute/Harvard University weppage.https://wyss.harvard.edu/technology/robobees-autonomous-flying-microrobots/. Acessado em 20/5/2023.⁷Pereira, Antônio Batista e Jair Putzke. Dicionário Brasileiro de Botânica. Curitiba: CRV, 2010, p. 11 e 20. http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/sugestao_leitura/2010/biologia/dicionabotanica.pdf Acessado em 20/5/2023.

A beleza das asas de barata

Daniele MachadoIr para página do texto